O cenário é a Universidade, mas podia ser o trabalho ou uma reunião de família no fim de ano. O personagem da narrativa é estudante de graduação, que também é filho e irmão e trabalhador. Que pega metrô, barca, ônibus e ainda anda um pedaço de chão, ao relento, porque o transporte público não chega até a sua casa. Que trava brigas com o pai, que está sem emprego há um ano e meio e com o irmão que reprovou na escola. O cenário pode ser qualquer um, assim como o personagem - que está andando meio sem sono, ansioso... Digo isso com base nas histórias que ouvi de centenas de pessoas nos últimos meses, que, diante da grande crise política, econômica e social que enfrentamos, veem suas realidades permeadas por adversidades, estresses, rupturas e cobranças difíceis.
As transformações na vida da população nos últimos anos não se dão apenas na redução da capacidade de consumo por conta da diminuição de suas rendas, mas pela construção de um mundo onde o acesso a direitos fundamentais, como saúde e educação, é cerceado. No nosso país, as desigualdades se expressam de forma nítida na distribuição das riquezas. Hoje, somos a 9ª maior economia mundial mas somos o 10º pior país em distribuição dessas riquezas. Aqui, 1% da população detém 30% de todo o patrimônio do povo. Mas não acaba por aí: as violências que se expressam no acesso desigual às riquezas também são presentes quando a gente pensa em possibilidades de viver na cidade. O Rio de Janeiro, por exemplo, viveu cortes nas linhas de ônibus em 2016 que tornaram mais difícil o acesso de moradores de áreas específicas da cidade as regiões mais ricas. Pouco tempo depois, em 2017, a Intervenção Militarizada que o presidente golpista decretou, mais uma vez, tinha endereço, cor e classe. O que eu quero apresentar, até aqui, é que uma forma dominante de se gerir a vida no contemporâneo opera, sobretudo, para eliminar a vida de alguns e fazer outros viverem de formas muito específicas. E o que isso pode produzir? O que acontece enquanto o tiro come nas favelas? Na minha opinião, práticas como as apresentadas anteriormente podem consolidar uma cultura de individualização muito forte, pralém de tantas outras implicações político-sociais. Quando a gente diz para um jovem que ele não pode ir à praia, estamos fazendo muito mais que tirar dele o direito de viver na sua cidade (o que já é bem grave por si só). Estamos dizendo que ele não é digno de tal espaço do mundo. Estamos ensinando para as nossas crianças que os espaços da vida coletiva não são seus porque não existe espaço para uma vida genuinamente coletiva quando se é pobre. Aí que entra a análise do (quase) psicólogo: a medida que esse cenário de solidão e desamparo cresce, a gente imagina que as possibilidades de viver o mundo são limitadas e que estamos sozinhos. E aí o sofrimento encontra espaço para se criar.
Digo isso porque é em tempos de acirramento da situação social que conseguimos notar, de forma sensível entre os nossos círculos sociais, uma expressão de alguma forma de angústia. Seja pela emergência de patologias, como a depressão, ou pela manifestação de sofrimentos outros. Não é por acaso que eu começo esse texto ensaiando a história que pode ser de tantas Marias e Joãos - nossa vida tem sido frequentemente interpelada pela urgência dos sofrimentos do nosso tempo; nossos e das pessoas que amamos e convivemos. Essa urgência existe e materializa uma nova tarefa para todos nós: o que fazer? Como compreender as peculiaridades do nosso tempo e avançar a partir das suas limitações? Qual a tarefa do camarada diante de um cenário de sofrimento intenso?
Não existe uma fórmula para se conhecer a subjetividade humana, porque ela é produto de uma complexa relação de aspectos de um determinado tempo e das relações do homem com o mundo. Então, não existe uma fórmula para consultar em casos de sofrimento psicológico. A essa altura, a tarefa é um pouco mais difícil. As vezes, é assustador pensar que tem tanta gente manifestando alguma forma de adoecimento ao nosso redor e a gente fica sem saber o que fazer. O adoecimento, provocado pela crise que tira as perspectivas de vida, não é nada mais que uma manifestação do nosso corpo sobre a experiência de vida do contemporâneo. Observamos profundas transformações do nosso modo de organização nos últimos anos, mas se sua estrutura não se transforma, melhorias pontuais da condição de vida dos trabalhadores se dissolvem num cenário mais amplo de corte de direitos e de esgarçamento das formas de produção de coletividade, pela implementação de um regimento neoliberal na norma de vida da população, com a individualização dos sujeitos e aceleração da vida.
O que isso mobiliza, no nosso processo de produção de subjetividades, pode ser devastador. Perder os alicerces de uma vida muitas vezes pode causar ansiedade, depressão, pânico e afins. Para a juventude, que caminha pelo mundo com suas próprias pernas em busca de um lugar seguro, isso é aterrorizante: sem vagas na faculdade - quando tem, não tem assistência; sem postos de trabalho; sem perspectiva de se aposentar; sem esporte, cultura e lazer; sem direito a cidade… Assim, a tarefa desse momento é construir a mudança nesse mundo. Pra virar o jogo, a gente precisa estar em campo, fortalecidos, compreendendo que o processo de adoecimento é devastador e diante dele é central procurar tratamento, mas que um tratamento só é realmente potente quando se tem, simultaneamente, uma rede bem forte e consistente em torno da gente. A tarefa de um camarada, diante do adoecimento de outro, é construir possibilidades de tratamento adequado (profissional) e fortalecer o coletivo que esse sujeito mobiliza. Não é uma tarefa individual, tampouco só daqueles setores da saúde, lidar com essa realidade. Precisamos de uma profunda elaboração sobre a realidade social que atravessa nossas vidas para traçar planos para sua superação.
A crise do capitalismo não é uma coisa abstrata, tampouco o modo de organizar a vida no neoliberalismo. Essa forma de operar a vida faz viver de formas muito específicas, tira o brilho nos olhos do povo e faz muitos sofrerem para sustentar o privilégio de poucos. Sabendo disso, diante de tantas incertezas, cortes e retiradas de direito, nós, anticapitalistas e que acreditam na construção de um mundo radicalmente novo, precisamos nos fortalecer para que nossos jovens entendam que a viver vale a pena; precisamos resgatar a esperança que o futuro é mais que uma distopia. Se algo nos tira o vigor de viver, nossa tarefa é defender cada vez mais as nossas vidas. Nossas ações, enquanto anticapitalistas, devem apontar para a construção de uma nova sociedade, livre de toda opressão. O afeto é uma das forças mais poderosas que existem e o fortalecimento dos nossos vínculos, onde quer que eles estejam se construindo, pode nos preparar para lidar com as adversidades do contemporâneo. A vida pode ser incrível.
Depende de nós construir um mundo com cada vez mais liberdade, saúde e felicidade, para que a gente possa viver bem. Uma coisa que aprendi nos últimos períodos é que nada do que é foi sempre, então podemos fazer diferente. O que foi feito da vida pelos poderosos talvez não seja o que a vida ainda pode ser. Mas, pra saber, a gente tem que mergulhar com tudo. Como diria um companheiro muito querido, o que a vida pede da gente é coragem.
Caíque Azael é graduando em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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